
“...Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal, abrem-se para para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está pra chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio. Conhec
i os ipês na minha infância, em Minas, os pastos queimados pela geada, a poeira subindo das estradas secas e, no meio dos campos, os ipês solitários, colorindo o inverno de alegria. O tempo era diferente, moroso como as vacas que voltam em fim de tarde. As coisas andavam ao ritmo da própria vida, nos seus giros naturais. Mas agora, de repente, esta árvore interrompe o tempo urbano de semáforos, buzinas e ultrapassagens, e eu tenho de parar ante a esta aparição do outro mundo. Como aconteceu com Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, e viu um arbusto pegando fogo, sem se consumir. Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: “Tira a sandália dos seus pés que solo pois a terra em que pisas é santa”. Acho que não foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde, sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o escritor sagrado estava certo. Também eu acho um sacrilégio chegar perto e pisar milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido sua vocação de amor.
Mas sei que o espaço urbano pensa diferente. O que é milagre para alguns é canseira para a vassoura dos outros. Melhor o cimento limpo que a copa colorida. Lembro-me de um pé de ipê, indefeso, com sua casca cortada a volta. Meses depois, estava morto, seco. Mas não importa. O ritual de amor no inverno espalhará sementes pela terra e a vida triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto. A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis a sua vocação de beleza, e nos esperarão tranquilos. Ainda haverá de vir um tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia...” (Rubem Alves, Livro: Tempus Fugit)