(do cara Beto Ruschel, tentando o impossível e pedindo perdão pela quantidade de palavras avoantes conectadas por um só fio, tênue, entre o silêncio a música e o desejo de viver com força e eternamente para doar e imprimir sensações)
Entre os maiores músicos de jazz dos anos 70, no camarim antes da performance, havia uísque e cerveja acompanhado de todas as “inas” e “nabis” possíveis, mas, alheio, num canto, estava um pianista menino tomando yogurt.
(Ele ficaria sendo visto de cabelo black-power e calças justas pra todo e sempre procurando com a boca o buraco por onde saía sua bebida. Olhava pras paredes, longe de tudo mas perto da beberagem tão inusitada pra aquela hora.)
Em seguida, já no palco, aditivados, homens e instrumentos doavam seus calos, sangues, suores e lágrimas ao publico presente. Era pouco perto do que o menino do yogurt oferecia. Sem impulsos que não seu yogurt, ele se deixava penetrar pela música e era claramente encharcado por harmônicos, pulsos e dinâmicas únicas. Pra mim, o menino ouvia a sala de concerto e intervinha na sua arquitetura.
Nos seus solos, fazia a sala maior e menor a sua vontade. Simultaneamente, tocava para a sala, arquitetava com o grupo e se deixava tocar pelas respostas de tudo isso. Os gemidos, as expressões quase teatrais, os movimentos de seus ombros, a tensão do seu corpo elástico, magro, denunciavam a mais honesta e apaixonada relação com as raras dimensões escondidas pela música.
Diamante, raridade foi a impressão impressada em mim.
Pelos anos, vivendo minha vida, de repente encontrava-me outra vez com ele. Melhor dizendo, via as capas de seus discos.
A diagramação, as fotos de extremo bom gosto (algumas dele mesmo), a singeleza e as idéias contidas na arte traziam sempre uma assinatura.
(E eu pensava em como seria ser assim único, expressar-se musicalmente e imagéticamente com tanta unicidade.)
Mas ele é Keith Jarret, o Dr. Charrete, eu brincava.
Diretamente das terras mais frias, sucessivamente vinham notícias dele, até tocando saxofone, juntando-se a outras sonoridades. Procurava mais e mais vôos nas terras nevadas ouvindo suecos e dinamarqueses guturalmente agradecerem por sua presença.
Aí, aconteceu “Facing You”, quente, cheio de música, um grande e ensolarado presente para quem esperava por ele e seus improvisos e mais contatos com o desfiladeiro e o vôo do falcão.
Noutra fase, só de marra, revisitou os clássicos. Back, Mozart, Shostakovski foram repaginados com vigor sobre-humano, estudo, capricho, respeito e humildade. Com orquestras ou sem, todos, eram ele e seus amigos em música.
Passa-se o tempo com eu e ele sem nos ver, até que ele reaparece…de surpresa.
No ano de 1977, em mais uma noite das inesquecíveis, era como se ele já fizesse parte da minha vida. Éramos velhos irmãos.
(Porém, sem perceber, quando ME vi depois deste encontro, já era outro e não mais aquele de duas horas atrás, menino novo.)
O quê estava presente ali, além do som, era a capa do Köln Concert no chão.
Com a participação de Mr. Thorens, duas mocinhas AR, um sisudo Marantz (sendo espreitados por um velho/novo Bala Doze), ele e a música invadiram a pequena sala que havia sido pensada para encontros daquela tipo.
Num tempo lento, começou o ritual de consagração à vida plena de vôos e decolagens, pontes sobre rios lá embaixo, ora, uma escada, os corrimãos inexistentes e desfiladeiros entre pedras mais pequenos pássaros coloridos em pleno mergulho. As asas banhavam-se na espuma descendente rarefazendo o ar e chamando o arco-íris. A água, musica, lá embaixo, esvaindo-se entre pedras, procurando caminhos pra descendo enfiar-se pela terra.
Mas aquela água, contra todas as leis da física, subia, fazia ficção de teatro, de fantoches e marionetes.
E o homem, marionete, sendo tocado pela música. Jogado por ela de um lado para outro.
Desde a ponta de um sólido granito um falcão peregrino, os pequenos olhos amarelados envolvendo a íris movediça, observavam.
Em algum lugar indefinido da salinha estava sentado o Zeca Assumpção. Eu não sabia mais onde.
Bastava cerrar os olhos para que ela, a imagem, magicamente, passasse a ser a de um amplo recinto de teto alto e cortinas pesadas. Uma sala com vista para o mar furta cor lá embaixo. Os borrifos salgados das pedras banhadas pelo Mediterrâneo entravam por uma janela espanhola de século 16.
E o Dr. tocava o piano. Ele todo e inteiro! A pedaleira marcava o pulso.
Mais passagens musicais de buscas e indecisões precisas e claras pela praça alemã. Mas dedos e teclas, mecanismos e músculos de alcance especial, encontravam tesouros. Desvendavam o tempo cruzando épocas e reconhecendo o sol, a lua, planetas e espaços.
As águas do mar Mediterrâneo salgaram o verão das ruas do Harlem com os hidrantes sendo chafarizes.
Um menino negro, excitado, gargalhando desafiante, magro e de calção azul desceu a rua em direção ao Bronx. Passou pelos mais velhos de olhar perdido na moldura das janelas do primeiro andar.
No parapeito bem alto de um edifício, o falcão peregrino viu um ônibus cheio de brancos ser desviado de seu trajeto. Estava muito quente o tempo, e os olhos piscaram a procura de pombas.
Pausa. Exploração do silêncio musical.
A visão nublava. Repetidamente um acorde, mas na tônica era alterada andarilha ouvia-se tudo e nada, assuntos de sábios, Gurdief.
Vi o coro de negras perfumadas, gordas, magras e mais ou menos, dentes alvos batendo palmas na Igreja Batista.
O pianista também via, ouvia e gemia querendo agradecer o transe para sair pra rua abraçando a todos companheiros de culto.
Disfarçadas, levadas por ventos, as gotas de água salgada já eram nuvens e algum primo do Anjo Malaquias, voando de cabeça para baixo, as asinhas na bunda, cansado daquela posição, deitava numa delas.
O falcão, flecha curiosa, fica estático longamente planando numa camada de ar ascendente. Observa, calcula e olha, olha…
Estendendo a mão em concha, o Anjo espera pela água da chuva nova, umidece o rosto, bebe das próprias lágrimas e, no seu cansaço, despenca para, mais uma vez, voar em busca de ser menino anjo normal.
Como se isso fosse possível, piano, tocador de piano, a assistência e os dois meninos, Beto e Zeca, na sala, embarcados por todos os limites do corpo,numa única nota esperavam por uma porta que se abrisse para o espaço de mais luz ainda –
E mais luz acendia-se pelo emaranhado de tentativas, becos, alamedas, ruas e caminhos estreitos. Na espera, tijolo por tijolo, outra casa surgia a frente.
Vinha, em papel com timbre vermelho, outro convite para outra festa.
- Bem vindos, Senhores! Basta entrar, sentar e ouvir, respeitosamente, por favor! É permitido vistoriar às damas e seus vestidos de armação, seus peitos arfantes saltando dos decotes e “fazendo de conta” que “são” damas interessadas e distraídas com seus leques.
Muitas viagens e vôos.
Súbito, depois das muitas histórias ouvidas e recontadas, imagens com sentido de vida plena, acontecimentos pelas eras e muros de ruas com archotes, saio do transe. De dentro de onde estava, sei que estamos próximos do final da peça.
A repetição (com uma sétima insistente prenuncia) se repete.
É um final ameaçado, criando mais e mais tensão.
Muitas vezes dentro do improviso, as notas ficam dizendo metricamente “eu sou você”, assim mesmo em português.
Mas eram outras as palavras, elas diziam “eu sou falcão”.
Sem falas inúteis Zeca e eu nos sorrimos e a sala se encantou com o silêncio da platéia hipnotizada entre a dimensão do estágio de incorporação do que havia ouvido e de onde se encontrava.
Silêncio, lindo e concreto, musical, para acreditar que Keith Jarret findara a apresentação da primeira peça improvisada no meio da tarde. Mesmo que fossem desnecessárias, outras viriam,
A missão da música estava cumprida.
Tive a sensação de que clareava o dia, levantei e, pela janela, olhei pra fora. Vi uma sombra, no jatobá mais alto do grande jardim. Era ele, o falcão. Pousara.
Enquanto me olhava fixamente, pareceu afirmar, “Aprendeu? É assim que se vive entre os ventos! Assim é que se é falcão!”.
Juro, quisera ser um falcão peregrino, mas diante desta (im)possibilidade, deixo-me assim mesmo, com os pés no chão, embora – como um dia disse o Renato Poeta Teixeira – com cabeça entre as estrelas… anjos e falcões.
Pra todos eles, peregrinando o cosmos é o limite.
Daqui do solo, limitado pela pele sem penas ou vôo, resta-me dividir, o quê também é uma maneira de voar.
(Sugestão a qualquer leitor interessado em sentir a sombra do falcão peregrino passar nos céus:
Ouça o CD ”Melody at night with you” dedicado pelo Dr. Charrete a sua mulher.
Depois de um longo período muito doente, ele voltara a tocar. No encarte, ele diz e oferece: For Rose Anne. Who heard the music. Then gave it back to me.)