(do cara Beto Ruschel que, quando fez esta fotinha, pensou “Vão felizes, devagar, os dois em busca do que querem encontrar…”)
”As roupas de uma pessoa são notícias de seu interior.”
( Neli Dutra, na novela “O espelho”)
Um dia, pode que eu encontre ainda o livro em algum sebo. Sei pelo Google da existência de um exemplar numa universidade norte-americana.
O resto, é silêncio.
Pode que ainda me depare com minha mãe ainda jovem e escrevendo seriamente. Mas guardo comigo o que ela simbolizou pra mim: no mínimo, curiosidade.
Ela chamava o que escrevia de “pataquadas lamurientas” e ia queimando, um a um, seus escritos. Exorcista catártica, figura, ela.
Pensava aqui nestas coisas, nas queimações que ela providenciava, e daqui de Minas fui pro terreiro da aldeia Kuikúru na frente da oca do Orlando Villas-Bôas.
Ele nos falava, eu com 16 anos e com a tarde caindo, sobre como alcançar o universo do pensamento indígena.
“Estava sentado observando uma índia brincando com sua filha pequena na beira do rio. As duas riam muito, foi isso que me chamou a atenção. Estavam ali já há muito tempo.
A brincadeira era assim: sob o olhar da indiazinha, a mãe juntava uma porção de argila nas mãos e começava a esculpir. Aos poucos, com penas, bico, rabo, pernas finas, aparecia uma galinha. Quando ficava pronta, a índia oferecia a galinha à sua filha. Ela pegava um pedaço de graveto grande e destruía a galinha a pauladas. Imolava o bicho e as duas morriam de rir.
Quando ela ali na minha frente fez a quarta galinha, fui até lá e perguntei porque, depois de tanto capricho com os detalhes, ela deixava a filha matar a galinha daquele jeito. Aproveitei e sugeri que ela fizesse uma galinha “menos galinha”, sem tantos detalhes e capricho.
Ela me olhou séria, ouviu minha explanação sobre a inutilidade da sua concentração artística.
Depois, sorriu e respondeu.
- Seu Orulando, se eu fizer assim, aí não é mais uma galinha de verdade!!!
Com a exatidão da resposta, a distância de um cosmos inteiro que havia entre meu pensamento e o dela, a sua mais que poética – real clareza de seu raciocínio-, voltei para o meu posto de observação e continuei ouvindo as duas gargalhando por muito tempo mais.”
A Neli, mesmo quando chamava seus escritos com “pataquadas lamurientas”, sabia que os símbolos adoram esconder-se de quem não sabe procurá-los ou não tem interesse por eles.
Pataquadas são coisas sem importância, as lamurientas, então, menos importantes serão. Suas “galinhas”, as da Neli, por mais reais que fossem, não lhe pareciam suficientemente galináceas. Assim como, pra indiazinha e sua mãe, a única galinha verdadeira era aquela que era morta a pauladas na beira de um rio no Xingú. Nenhuma outra serviria.
Uma e outra índias viam o símbolo, abstinham-se da idéia e existência do animal verdadeiro, este, ali, era mais real (por sua irrealidade explícita) que a própria realidade delas: pra elas, só havia uma só galinha no mundo, aquela da brincadeira.
Cavar fundo pra entender o sentido das coisas, eventos, emoções e sensações imagéticas, este turbilhonamento incompreensível que nos faz buscar sentido pra a vida e suas várias vestimentas ou suas muitas camadas de entendimento, é tarefa fascinante.
Separar a pergunta da resposta é impossível, desunir símbolo e objeto simbólico do nosso repertório expressivo, uma raridade.
É pouco provável que isso aconteça a nós, os simples mortais, os esforçados, mas incompetentes e preguiçosos normatizados por uma existência, aparentemente, sem sentido.
Mas, a arte… a música, os belos textos e imagens, as interpretações de alguns atores, músicos e bailarinos, as esculturas do Caldel (que “são” em movimento, ora aqui, ora ali, múltiplas) e a egrégora de alguns ambientes cujos espaços nos abraçam e abarcam por todos os lados (um terreiro de aldeia indígena ou capela de beira da estrada)… estão aí.
Apontam um rumo, esticam o beiço como qualquer mineiro de estirpe legítima e dizem.
- É logo ali!
Por menos “ali” que o objeto de nossa procura esteja, ou seja, ou simbolize, ele estará ali.
Nas asas da canção (Dona Ivone Lara - Nelson Sargento) # Nelson Sargento e Dona Ivone Lara