As políticas implementadas pelos Governos para o mercado elétrico nas últimas décadas ao redor do mundo foram decisivamente marcadas pela proposta, alçada à condição de norma, da liberalização desses mercados, tradicionalmente monopolistas e fortemente regulados.
O Brasil não fugiu à regra e também implementou a sua reforma liberal na década passada, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso. Passados quase vinte anos de experiência reformista no mundo, é importante avaliar os resultados e os impasses dessa proposta que tanto mobilizou nosso liberalismo tupiniquim nos anos 1990s.
Ano passado, publiquei no INFOPETRO um
artigo analisando o “estado da arte” da discussão sobre o tema. Já este ano, um artigo publicado em março no The Electricity Journal, de autoria de Fereidon Sioshansi, me despertou o interesse que, aqui, divido com vocês.
O artigo em questão sumariza as questões apresentadas em um livro publicado este ano, organizado pelo autor, que procura avaliar as experiências de reformas elétricas ao redor do mundo: Competitive Electricity Markets: Design, Implementation, Performance (Oxford, UK; Elsevier, 2008).
A principal conclusão que se pode tirar dessa ampla avaliação é que, apesar da experiência adquirida e das lições apreendidas serem consideráveis, a reforma do mercado elétrico continua sendo complexa e desafiadora.
Vários fatores intrínsecos a essa reforma respondem por essa complexidade.
Existe hoje um consenso entre os especialistas sobre a necessidade de reformar as reformas, continuamente. Essa necessidade resulta do fato de que a fase inicial de concepção e implementação das reformas introduz complexidades, incertezas, riscos e conseqüências indesejáveis adicionais que precisam ser resolvidas em uma fase posterior das próprias reformas. Desse modo, as reformas se transformam em processos, deixando de ser intervenções pontuais, que se encerram no momento da sua implementação. Em outras palavras, as reformas se constituem em processos contínuos e abertos.
Diante disso, o papel dos reguladores e dos “policy makers” torna-se muito mais ativo do que aquele esperado inicialmente. Assim, ao contrário da aposta inicial, as instituições se tornaram mais importantes, e não menos, com a liberalização dos mercados elétricos.
Introduzir a competição, como todos hoje reconhecem, não é uma panacéia para curar todos os males da indústria elétrica; especialmente, se os mercados são mal concebidos e implementados. Somando-se a isso as falsas promessas e as róseas interpretações políticas que acompanham geralmente as reformas, compreendem-se as grandes decepções que muitas vezes seguem esses processos. Desse modo, a subestimação das dificuldades, por um lado, e a sobrevalorização dos resultados esperados, por outro, constroem a frustração que irá engendrar a perda do apoio político e o refluxo da própria proposta reformista.
No caso americano, os estudos existentes apontam para o fato de que a reforma não foi capaz de reduzir os diferenciais de preço que existiam na década de noventa. Isto significa que os fatos disponíveis hoje não sustentam a tese de que os consumidores nos estados que foram reestruturados estão em condições melhores do que os consumidores que se encontram nos estados que não o foram.
A desilusão com o mercado varejista de eletricidade nos Estados Unidos esvaziou qualquer perspectiva de avanço nessa área, incluindo o movimento de construção de um mercado de âmbito nacional. Além disso, vários estados que já se reestruturaram estão hoje debatendo a volta à regulação tradicional. Nesse contexto, não há nenhum interesse por parte do Congresso Americano em incentivar a construção de um mercado varejista que integre todo os Estados Unidos.
Nesse quadro, muitos consumidores estão defendendo a volta ao sistema antigo, admitindo que embora ele não seja perfeito, ele é mais previsível e tolerável. Essa posição inclui até mesmo associações de grandes consumidores industriais, que normalmente apóiam a competição e o livre mercado, que alegam que, do jeito como os mercados estão atualmente organizados, eles não são competitivos, são anti-consumidores e, provavelmente, não mudarão por eles mesmos.
No que concerne à desverticalização, esse tema permanece em aberto. É evidente que, depois de duas décadas de reformas, muitas empresas que se desverticalizaram, tornaram-se a se verticalizar – caso inglês. Há claras evidências de que a combinação de geração e comercialização no varejo – ou seja, as duas pontas da cadeia – é extremamente eficiente para enfrentar os riscos e a volatilidade característica do preço da eletricidade. Sem contar, a velha tese, que permanece com muitos defensores, de que a verticalização gera economias de escala relevantes.
A crise da Califórnia e, em particular, a atuação especulativa, para dizer o mínimo, da Enron geraram o reconhecimento, por parte dos reguladores e legisladores, da importância do monitoramento severo do mercado. Hoje é plenamente aceito que a monitoração, a supervisão e a vigilância sobre o mercado devem ser fortalecidas e que as averiguações, as decisões e as recomendações dos órgãos encarregados dessas ações devem ser seriamente levadas em conta.
A maior elasticidade da demanda permanece sendo um objetivo difícil de ser alcançado, tanto em termos técnicos quanto institucionais. Os desafios associados ao encorajamento da participação, pelo lado da demanda, no mercado competitivo são multi-facetados e complexos e continuam sendo restringidos pela indisponibilidade de tecnologias capazes de fazer a interface entre ofertantes e demandantes a um custo economicamente viável.
Seguem as dúvidas sobre a capacidade do mercado gerar os incentivos adequados à expansão consistente dos sistemas elétricos em seus três segmentos: geração, transmissão e distribuição. Nesse sentido, a questão de como o mercado irá prover os sinais necessários para alimentar o apetite voraz da indústria elétrica por capitais de longo prazo permanece totalmente em aberto.
Se, por um lado, existe um forte apoio ao aumento da participação das fontes renováveis na geração de eletricidade, por outro, não existe um consenso sobre qual a melhor maneira de subsidiar a entrada dessas fontes sem distorcer, de forma significativa, a operação coerente dos mecanismos de mercado.
Em suma, a reforma do mercado elétrico continua sendo uma tarefa complexa e difícil. Se o atual contexto de forte desequilíbrio entre oferta e demanda de energia, traduzido nos patamares de preços de petróleo muito mais elevados do que na década anterior, e a
presente e grave crise financeira forem adicionados ao quadro, o nível de complexidade e dificuldade desse empreendimento aumenta consideravelmente.
Não é à toa que, ao final, Sioshansi remete a continuidade e o sucesso da competição no mercado elétrico à perseverança e fé do apoio político à reforma. Portanto, a introdução da competição no mercado elétrico deixou de ser uma norma, como era encarada na década passada, para ser uma questão de fé. E, como se sabe, quando o assunto é fé, cada um tem a sua.
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