Por alguma razão sempre franzi a testa e tive dificuldade em lembrar com exatidão da minha infância. Lembro da minha timidez e meu isolamento,mas um dia encontrei com antigos colegas de escola que me abraçaram tão calorosamente e tinham tantas boas lembranças comigo que acabei achando que esta parca lembrança inventei algum dia. O que lembro com todos os sentidos e com cada detalhe é de meu avô materno e da tia que me deu. Cabelos cor de fogo, muitas sardas no rosto e aquele amor incondicional de criança que eu tinha por aquela outra menina. Sim, porque nossa diferença de idade é tão pequena que poderíamos passar por irmãs, mas esta pequena diferença fazia dela quase um ídolo para mim, que a achava uma adulta, alguém com quem eu gostaria de me parecer e que imitava com afinco. Lembro do dia em que resolvemos colher pimentas como se fossem morangos e dos lábios inchados; resultado da brincadeira. lembro de ouvirmos Rita Lee e sonharmos com o escurinho do cinema. Lembro de estarmos sempre juntas e com certeza, filha única que sou, de ter tido o mais próximo que poderia de uma irmã. E das descobertas da vida e da adolescência e tantos amores platônicos, de irmos juntas a uma cartomante tentar adivinhar nossos futuros que poderíamos imaginar muitos mas sempre em conjunto. Não foi assim....tanta cumplicidade e tanto amor um dia andaram separados pelas esquinas da vida e nossos pés trilharam incertos duros caminhos. Separadas vivemos vidas tão diferentes e em muitos momentos, como eu pensei, ela deve ter pensado, o quão incoercível seria para a outra sabermo-nos nestas novas vidas. Nos encontramos, brevemente, por dias que pareceram uma eternidade, no hospital em que meu avô entrou para não mais sair e ali, sob os olhos dele parecia que o tempo não havia passado; eramos de novo as duas crianças de mãos dadas naquele hospital sombrio do interior. Sei que meu avô ficou feliz; em algum momento daquela doença angustiante, misturado com a sede permanente que tinha e a imensa consciência da velhice, sei que ficou feliz. Depois dali, andamos novamente em direções opostas, abrindo caminhos à força e com força. Fomos muitas e muito sós. Passamos a acreditar uma vez mais que esta infância e tantos sonhos haviam morrido na praia de nossa meninice e que nunca poderíamos compreender novamente uma a outra porque já não reconhecíamos a nós mesmas quando olhávamos no espelho. De formas diferentes; no entanto, vivemos as mesmas dores, hoje eu tenho certeza e nesta linha estranha do tempo, em um momento terrívelmente doloroso para mim, a primeira imagem que veio a minha mente foi a de minha tia passando exatamente pela mesma situação;quase cheguei a sentir o coração dela batendo magoado e triste, mas era o meu. Hoje trocamos amenidades quando conversamos, já não confidenciamos cada minuto do nosso dia, exaustivamente como fazíamos outrora; somos mulheres. E sinto nela a ambiguidade de um amor de mágoas caladas e tanto sofrimento passado que um abraço assim, agora, já não conserta. Sinto nela esta premência de estar longe para lembrar melhor do que fomos; para consolar a si mesma. E sinto a força dela à distância e tudo o que ela não diz, posso ler como se estivesse assim em letras garrafais escrito em uma lousa a minha frente, como a lousa em que meu avô escrevia cálculos matemáticos para que resolvessemos. O cálculo da distância das dores meu avô não nos ensinou, precisávamos aprender sozinhas.
Gostaria de dividir com ela o que nos aproxima e tê-la de novo ao meu lado sorrindo e invejar seu rosto lindo; mas a vida é mesmo assim...hoje não tenho a urgência da infância em arrancar e despejar segredos; posso ouvir seu coração em silêncio e guardar cada dor susurrada no mesmo saco de brinquedos da infância, junto com tantas alegres cores. Em silêncio, quando ninguém está vendo, nossas almas brincam juntas e somos e novo crianças entre cores e dores.
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